Por Jean Zurcher (RA, maio, 1981)
Recentemente tive em Jerusalém o privilégio de visitar as escavações que estão sendo levadas a cabo no canto sudoeste do muro da esplanada do templo, um pouco abaixo do Muro das Lamentações. Uma vez que o sítio não está aberto ao público, tive de conseguir uma autorização especial. O guia que me acompanhou havia tomado parte nas escavações. Como cada pedra lhe era familiar, suas explicações foram fascinantes.
Usando as pedras que estavam ainda em posição e as que estavam espalhadas ao redor, meu guia procurou ajudar-me a visualizar a vasta escadaria e a ponte de acesso que levava â entrada principal das cortes do templo. O começo da arcada pode ainda ser visto no muro. No terreno abaixo os arqueólogos puseram a descoberto os fundamentos, vários degraus que ainda estão intactos, e a massa de pedras talhadas que ajudaram a fazer este imponente edifício. Destes artefatos eles, os arqueólogos, conseguiram reproduzir a planta exata que mostra a grandeza e beleza desta entrada monumental.
Foi provavelmente quando saíram por esta porta do templo que os discípulos (S. Mat. 24:1) chamaram a atenção de Jesus para as "grandes construções" (S. Mar. 13:2) e as " belas pedras" (S. Luc. 21:5) de que era composto. Não tive dificuldade em figurar a cena ao observar aquelas enormes pedras brancas e o remanescente das duas magníficas colunas de mármore rosa que primitivamente decoravam a entrada principal que levava ao templo.
Contemplando aquelas pedras reviradas, perguntei ao meu guia: "Como puderam levar a cabo esta destruição?
Que tarefa titânica deve ter sido mover todas essas pedras, cada uma delas pesando dezenas de toneladas!"
"Absolutamente", respondeu o arqueólogo. "Nada poderia ter sido mais simples. Encontramos o segredo nas próprias pedras. Tudo que tinha de ser feito era aquecer a pedra angular até que ficasse embranquecida de quente, de modo que ela finalmente se partia e caía. Então toda a estrutura vinha abaixo. Onde quer que tenham encontrado uma pedra angular, os soldados romanos usaram a mesma técnica."
Assim é que a profecia de Jesus sobre o templo foi cumprida ao pé da letra: "Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra, que não seja derrubada." S. Mat. 24:2.
Em minha opinião a pedra angular, por assim dizer, de nossa interpretação das profecias de tempo de Daniel e Apocalipse é o princípio do dia-ano. Se este princípio é destruído, o maravilhoso edifício das verdades tipicamente adventistas entra em colapso. A doutrina do santuário, o juízo investigativo, o papel e ensinos de Ellen White, a origem e crescimento da igrej a adventista — em resumo, nossa raison d'être, passa a ser questionada.
Há muito que os críticos têm reconhecido isto. Em seu livro Another Look at Seventh-day Adventists, N. F. Douty escreveu: "Todavia os adventistas do sétimo dia, que se dizem divinamente chamados para esta obra de finalização, têm esta mesma teoria como sua pedra angular, de modo que descartá-la seria destruírem-se a si mesmos" (Grand Rapids, 1962, pág. 95). Ele atacou vigorosamente o que chamou de "falaz teoria do dia-ano" (pág. 102).
Seja qual for a importância do papel do princípio do dia-ano em nosso sistema de interpretação, deve-se esclarecer que não foram os pioneiros do movimento do advento que inventaram o método dia-ano para a exegese de profecias cronológicas apocalípticas. Antes, eles herdaram a tradição que remonta a mais de mil anos, aos primeiros séculos de nossa era.
Pensa-se geralmente que o princípio do dia-ano foi aplicado pelos Pais da Igreja na interpretação das 70 semanas de Daniel, do fim do segundo século em diante. Temos toda razão para crer que, em vez disto, eles seguiram a tradição judaica do dia-ano, como se poderá ver no próximo artigo desta série. Seja como for, pelo menos 14 autores judeus são conhecidos como tendo aplicado o princípio do dia-ano ao período das duas mil e trezentas tardes e manhãs. (Ver A. Vaucher, Lacunziana, vol. 1, págs. 54-56.)
Muitos teólogos católicos da Idade Média e dos tempos modernos admitiram também o princípio do dia-ano sem dúvida, bem assim um grande número de exegetas protestantes desde a Reforma até o presente. Em The Prophétie Faith of Our Fathers, LeRoy E. Froom menciona aproximadamente 200 autores que empregaram o princípio do dia-ano em sua interpretação das profecias de tempo de Daniel e Apocalipse. Não há dúvida de que nos encontramos em boa companhia.
Não obstante, a precisão de um princípio, para dizer a verdade, não depende do número de seus oponentes. Ellen White expressou bem este ponto: " O fato de que certas doutrinas têm sido tidas como verdade por muitos anos pelo nosso povo não é prova de que nossas idéias sejam infalíveis. O tempo não transforma o erro em verdade." — Counsels to Writers and Editors, pág. 35. É por isto que os adventistas jamais tentaram justificar o princípio do dia-ano pela tradição, por mais antiga que esta possa ser. Corretamente desde o princípio, nossos pioneiros procuraram fundamentá-lo em base bíblica. Hoje nosso crescente conhecimento ajuda-nos a consolidá-lo ainda mais.
Segundo os oponentes do princípio do dia-ano, uma das principais objeções é que ele se firme em dois textos apenas do VT, isto é, Núm. 14: 34 e Eze. 4:6. Prontamente eles salientam também que nesses textos o princípio é aplicado de modos opostos. No primeiro exemplo, é uma questão de um ano por um dia, enquanto que no segundo texto temos o princípio reverso, isto é, um dia por um ano.
Válidas como possam ser estas observações, elas não atendem à realidade. Há mais exemplos bíblicos de métodos similares de cálculo do que geralmente se pensa. E nem estão eles limitados à linguagem profética. Encontramos evidencia disto em Gên. 29:27. Este verso contém um interessante conceito. "Decorrida a semana desta, dar-te-emos também a outra, pelo trabalho de mais sete anos que ainda me servirás."
Talvez nesta conexão devamos considerar também a interpretação do sonho de faraó por José (Gên. 41:25-30). Admitido sem nenhuma dúvida, os sete anos de fartura e os sete anos de fome não permanecem em relação a dias ou semanas. Todavia, a mesma forma de relacionamento existe entre as sete vacas, as sete espigas, e os sete anos. Cada símbolo separadamente representa um ano.
Um Princípio Bíblico
Embora o princípio do dia-ano não seja afirmado de modo explícito, os vários exemplos citados mostram que um princípio de cálculo foi empregado desde o período patriarcal até pelo menos o tempo do exílio, que estabeleceu uma relação de dia-ano, ano-dia, ou mesmo de semana-ano. Há contudo outras relações baseadas neste mesmo princípio. Isto torna perfeitamente correto afirmar que há um princípio bíblico de acordo com o qual '' um dia na profecia vale por um ano " (O Grande Conflito, pág. 323; O Desejado de Todas as Nações, págs. 168 e 169; Profetas e Reis, pág. 698).
O mesmo ponto de vista foi adotado pelos autores das afirmações referidas pela Comissão de Revisão do Assunto do Santuário: "A relação dia-ano pode ser biblicamente sustentada, embora não seja explicitamente identificável como princípio de interpretação profética. ... E mais, o VT provê ilustrações do dia-ano intercambiavelmente em simbolismos (Gên. 29:27; Núm. 14:34; Eze. 4:6; Dan. 9:24-27)." — Adventist Review, 4 de setembro de 1980, pág. 14; Ministry, outubro de 1980, pág. 18.
Somos deixados então com a principal objeção: "Mesmo que pudéssemos provar que o princípio do dia-ano é um elemento bíblico válido, não há base para aplicar o princípio em Dan. 8:14 ou 9:24." À primeira vista, isto parece um argumento bem fundamentado. Todavia, a própria exegese de Dan. 9:24-27 e também Dan. 8:14 e 25 revela, de uma forma ou de outra, no texto ou no contexto, este bem conhecido princípio bíblico de cálculo. Assim, a interpretação histórica das profecias de tempo de Daniel e Apocalipse que são a base do movimento do advento, serão vistas como confirmadas.
Aos que pesquisam as Escrituras, sob a guia do Espírito Santo, as palavras de Jesus ainda constituem abundantes promessas: 4 'Por isso todo escriba versado no reino dos Céus é semelhante a um pai de família que tira do seu depósito coisas novas e coisas velhas." S. Mat. 13:52.
Os períodos proféticos que se encontram em Daniel e Apocalipse nos são dados em números simbólicos, representando cada um anos literais. Todavia, não creio que o princípio do dia-ano seja um imperativo absoluto no cálculo de cada um desses períodos proféticos. Daniel 9 apresenta dois exemplos de particular interesse: a profecia dos 70 anos de Jeremias e as 70 semanas proféticas de Daniel.
Ao referir-se à profecia de Jeremias, Daniel toma o cuidado de fazer notar: "Eu, Daniel, entendi pelos livros, que o número de anos, de que falara o Senhor ao profeta Jeremias, em que haviam de durar as assolações de Jerusalém, era de setenta anos." Dan. 9:2. Provavelmente Daniel estava aludindo aos rolos em que Jeremias registrou suas profecias. Em pelo menos duas ocasiões o profeta proclamou a profecia do exílio de 70 anos — primeiro perante todo o povo de Jerusalém (Jer. 25:11), e mais tarde aos cativos em Babilônia (cap. 29: 10). Pode ser também que esta profecia tenha sido escrita "no livro dos reis de Israel e de Judá" a que se refere muitas vezes o autor de Crônicas (II Crôn. 35:27; 36:8).
E mais, o segundo livro de Crônicas termina precisamente com um comentário dos acontecimentos preditos por Jeremias. Nessa oportunidade, a profecia do exílio de 70 anos é repetida pela terceira vez, juntamente com minudências outras da maior importância para o nosso estudo. O relato afirma que essas coisas aconteceram "para que se cumprisse a palavra do Senhor, por boca de Jeremias, até que a terra se agradasse dos seus sábados; todos os dias da desolação repousou, até que os setenta anos se cumpriram" (cap. 36:21).
Em outras palavras, a destruição e desolação que caíram sobre o país, como preditas por Jeremias (Jer. 25: 11 e 29:10), são aqui consideradas como conseqüência da infidelidade de Israel e uma aplicação das maldições pronunciadas por Moisés (Lev. 26: 14-45). E mais certo ainda que a referência aqui é ao que está indicado em Lev. 26:34: "Então a terra folgará nos seus sábados, todos os dias da sua assolação." Visto que "os estatutos, juízos e leis que deu o Senhor entre Si e os filhos de Israel, no monte Sinai, pela mão de Moisés" (verso 46), não tinham sido observados, o Senhor executou o juízo repetido quatro vezes no mesmo capítulo: "Tornarei a castigar-vos sete vezes mais por causa dos vossos pecados." "Então a terra folgará nos seus sábados" (versos 18, 34; comp. versos 21, 28 e 43).
A que sábados é feita referência aqui? Aqueles durante os quais Israel devia deixar a terra em repouso, em harmonia com as instruções do Senhor referentes aos anos sabáticos e do jubileu (Êxo. 23:10 e 11; Lev. 25:1-17). Daí vemos que o período de 70 anos da profecia de Jeremias é resultado de um cálculo similar ao de Eze. 4: 4-6. Todavia, em vez de ser baseado em um dia por um ano, a contagem é feita na base de um ano de exílio para cada ano sabático durante o qual a terra esteve privada de seu repouso. Em outras palavras, se cada um dos 70 anos de exílio representa um ano sabático, deve ter havido 490 anos de rebelião durante os quais os filhos de Israel deixaram de observar as leis e estatutos de Deus.
E interessante notar que a similitude entre essas duas profecias não está restrita apenas ao método de cálculo. Ambas têm suas raízes na infidelidade de Israel e cobrem o mesmo período de sua história. O profeta Ezequiel recebeu a incumbência de ilustrar de maneira simbólica os 430 anos de infidelidade da parte dos filhos de Israel sob a monarquia, desde Saul até Zedequias (Eze. 4:5 e 6). A Jeremias ordena-se que anuncie 70 anos de exílio pelos 490 anos da rebelião de Israel, desde o tempo de Samuel até a queda de Jerusalém. Daniel alude precisamente-a este período na história de Israel em sua oração intercessória: "Não demos ouvidos aos Teus servos, os profetas, que em Teu nome falaram aos nossos reis, nossos príncipes, e nossos pais, como também a todo o povo da terra.'' Dan. 9:6.
Obviamente, o princípio do dia-ano não pode ser aplicado à profecia dos 70 anos de Jeremias. Contudo, conforme temos visto, isto não significa que a chave bíblica para a interpretação não se aplique a esta profecia. Ao contrário, os 70 anos de exílio vêm a ser o resultado de um cálculo esboçado no próprio texto profético. O mesmo é verdade em relação à profecia das 70 semanas de Daniel (versos 24-27).
Cálculo das 70 Semanas
Não será certamente por mera coincidência que os 70 anos da profecia de Jeremias são mencionados no mesmo capítulo que as 70 semanas de Daniel. Os dois períodos estão vinculados por causa e efeito. Daniel orou em relação à profecia de Jeremias, e o anjo Gabriel veio imediatamente para o seu lado em resposta a sua petição.
Não é preciso dizer que Daniel conhecia as profundas razões por trás da tragédia de Israel. Ele as admitiu constantemente em sua oração intercessória, ao confessar os pecados do seu povo. Como o autor do livro de Crônicas, Daniel provavelmente conhecia também os outros aspectos da profecia de Jeremias que apresentavam os 70 anos de exílio como resultado dos sábados durante os quais a terra tinha sido privada de seu repouso. Suas alusões às maldições pronunciadas por Moisés recuam ao mesmo texto de Levítico 26 (Dan. 9:10-13).
Todavia Daniel tinha o conhecimento do Deus de Israel, que é longanimo, tardio em ira, e rico em misericórdia. Daí haver ele pleiteado o perdão e suplicado: "Sobre o Teu santuário assolado faze resplandecer o Teu rosto" (verso 17), ainda mais que os 70 anos da profecia de Jeremias estavam chegando ao fim. "O Senhor, ouve; ó Senhor, perdoa; ó Senhor, atende-nos ... ó Deus meu ... pelo Teu nome" (verso 19).
Daniel estava ainda falando quando Gabriel subitamente apareceu em resposta a sua oração, à hora do sacrifício da tarde (versos 20 e 21). Em seguida aos 70 anos de exílio, resultado das transgressões de Israel, o Senhor proclama agora, pela boca de Gabriel, 70 semanas de graça, finda as quais viria o cumprimento da esperança do povo de Deus. "Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade para fazer cessar a transgressão, para dar fim aos pecados, para expiar a iniqüidade, para trazer a justiça eterna, para selar a visão e a profecia, e para ungir o Santo dos Santos" (verso 24).
A interpretação das 70 semanas depende do significado atribuído a "semanas" a que se faz referência aqui. No original hebraico, a palavra shabüa designa um grupo de sete, a que chamaremos heptad ou hebdô-made, segundo o correspondente vocábulo grego. Os judeus contavam o hebdômade em três maneiras: (1) como uma semana, formada de sete dias; (2) como ano sabático, formado de sete anos (Lev. 25:1-7); e finalmente (3) como o ano do jubileu, formado de sete vezes sete anos sabáticos — isto é, 49 anos (verso 8).
Assim a palavra shabüa — semana — usada aqui e em outros lugares, pode designar um período de sete dias, de sete anos, ou 49 anos, dependendo de se estar tratando de semana, do ano sabático, ou do ano do jubileu. O significado só pode ser determinado pelo contexto. Em Dan. 10:2, por exemplo, lemos sobre um jejum de três semanas. Claramente, isto significa 21 dias, mas que dizer das 70 semanas de Dan. 9:24?
Tanto no texto como no contexto tudo se refere à mensagem dos anos sabáticos e jubileu. A tradição judaica, os talmudistas, o autor do Seder-Olam, e os interpretadores judeus em geral têm estimado que as semanas da profecia de Daniel só podem ser semanas de anos. Há evidências de que os Pais da Igreja usaram a mesma base para interpretar as 70 semanas.