Por Samuele Bacchiocchi
A terceira passagem crucial do Novo Testamento amplamente utilizada para defender a origem apostólica da observância do domingo encontra-se no livro do Apocalipse. João, exilado na ilha de Patmos, “por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus” (Apo. 1:9), escreve:
“Eu estava em espírito no dia do Senhor” (Apo. 1:10). A importância deste texto surge do fato de que, como diz R. H. Charles, “este é o primeiro lugar na literatura cristã onde o dia do Senhor é mencionado”.64 Deve ser observado que o vidente não usa a expressão “dia do Senhor-hmevra tou curiou” que se encontra uniformemente na Septuaginta e Novo Testamento para traduzir o yom YHWH do Velho Testamento, porém uma locução diferente, “dia do Senhor-Curiakh hmera”. Qual é o significado desta nova fórmula?
A expressão “dia do Senhor”, que se encontra em Apocalipse 1:10 tem sido interpretada em quatro modos diferentes. Resumirei sucintamente neste contexto as quatro principais interpretações. Domingo. A interpretação prevalecente iguala a expressão “Dia do Senhor” com o domingo. Esta equação toma por base não evidências internas do livro do Apocalipse, mas três testemunhos patrísticos do segundo século, ou seja, o Didache 14:1, a Epístola aos Magnésios 9:1, de Inácio, e o evangelho de Pedro 35 e 50. Desses, somente no evangelho apócrifo de Pedro, datado da última metade do segundo século, é que o domingo é inegavelmente designado pelo nome técnico “do Senhor—kuriakê”.
A designação do domingo como “dia do Senhor”, que inegavelmente aparece antes do fim do segundo século, não pode necessariamente ser lido em Apo. 1:10. Uma razão relevante para isso é que se o domingo já tivesse recebido a nova designação de “dia do Senhor” pelo final do primeiro século, quando tanto o Evangelho de João quanto o livro de Apocalipse foram escritos, esperaríamos que esse novo nome para o domingo fosse usado coerentemente em ambas as obras, especialmente em vista de aparentemente terem sido produzidas pelo mesmo autor aproximadamente no mesmo tempo e na mesma área geográfica.
Se um novo termo prevalece e é mais prontamente entendido, um escritor não confundiria seus leitores com designações arcaicas. Ademais, se a nova designação de “dia do Senhor” já existisse e expressasse o sentido e natureza do culto cristão, os autores dos evangelhos dificilmente teriam tido razões para empregar a frase judaica “primeiro dia da semana”. Portanto, o fato de que a expressão “dia do Senhor” ocorre no livro apocalíptico de João mas não em seu evangelho—onde o primeiro dia é explicitamente mencionado em relação com a Ressurreição (João 20:1) e os aparecimentos de Jesus (João 20: 19, 26)—sugere que o “dia do Senhor” de Apo. 1:10 dificilmente se referiria ao domingo.
Domingo de Páscoa. Outros eruditos sustentam que o “dia do Senhor” de Apo. 1:10 designa o Domingo de Páscoa, e não o domingo semanal. Esta conclusão firma-se basicamente no pressuposto de que, sendo que no Novo Testamento e na literatura sub-apostólica, pouca importância é dada ao domingo como um dia de culto cristão, o “dia do Senhor” de Apo. 1:10 deve então referir-se ao Domingo de Páscoa anual, a partir do qual mais tarde o domingo semanal se desenvolveu.
A maior debilidade dessa interpretação é que ignora o fato de que o livro de Apocalipse foi dirigido por João às sete igrejas da Ásia Menor, que sabemos terem rejeitado vigorosamente o costume do Domingo de Páscoa, apegando-se, em vez disso, à data de 14 de Nisã para a Páscoa.
Como iria João ter querido dizer, “achei-me em espírito no Domingo de Páscoa” quando escrevia para cristãos que, sabemos, prefeririam ser excomungados pelo Bispo Vítor de Roma a aceitarem o Domingo de Páscoa?
O Sábado do Sétimo Dia. Um terceiro ponto de vista, mantido por Igrejas observadoras do sábado, inclusive os adventistas do sétimo dia, mantém que o “dia do Senhor” de Apo. 1:10 designa o sábado do sétimo dia. Esta conclusão baseia-se especialmente no fato de que Cristo declarou-Se “Senhor do sábado” (Marcos 2:28).
Conceitualmente, há ligação direta entre o “Senhor do sábado” e o “dia do Senhor”.
Historicamente, os adventistas do sétimo dia têm interpretado o “dia do Senhor” de Apo. 1:10 em referência ao sábado do sétimo dia. Pessoalmente aceito esta interpretação, em especial por haver indicações bem óbvias de que a guarda do domingo não se originou antes do reinado do Imperador Adriano (117-138 AD). Ademais, há também indicação de que mesmo quando o domingo foi introduzido pela Igreja de Roma, muitos cristãos orientais adotaram a observância do domingo em adição, não em substituição, ao sábado do sétimo dia. Isso significa que possivelmente só o sábado poderia ser conhecido por João como o “dia do Senhor” antes do fim do primeiro século, quando escreveu o livro do Apocalipse.
Creio que não só o “dia do Senhor”, no qual João foi tomado em visão, foi o dia de sábado, mas também que somente o sábado pode ser legitimamente chamado e observado como o “dia do Senhor”.
O Dia do Senhor. Uma quarta interpretação, que tem sido defendida por eruditos tão
altamente conceituados como J. B. Lightfoot e A. Deissmann, considera que o “dia do Senhor” de Apo. 1:10 seria uma variante do “dia do Senhor” comumente empregado nas Escrituras com referência ao dia da vinda de Cristo e de Seu julgamento.
O apoio básico para esta interpretação é obtida pelos contextos imediato e mais amplo, ambos falando do dia da vinda de Cristo. Apoio adicional se tem nas referências de João ao “grande dia do Senhor” (Apo. 16:14; 6:17), e pelo paralelismo singular entre Apo. 1:10 e 4:1-7. Esse paralelismo consiste em semelhanças de expressões, contexto e conteúdo que sugerem que o “dia do Senhor” de Apo. 1:10 poderia entender-se, à luz de expressões paralelas, “o que deve acontecer depois destas coisas” (Apo. 4:1), com o sentido do dia da vinda de Cristo.
Pode ser possível combinar as duas últimas interpretações vendo o “dia do Senhor” tanto como o sábado do sétimo dia em que João foi tomado em visão. Maior visão não poderia ser dada para animar o idoso apóstolo no exílio para seu testemunho de Cristo! Ademais, o sábado está intimamente ligado com o Segundo Advento. O encontro do Senhor invisível no tempo, no sábado semanal, é um prelúdio do encontro do Senhor visível no espaço, no dia final de Sua vinda.