Por Carlos A. Trezza (RA, jul/81)
A Bíblia — Novo e Velho Testamentos — além das numerosas referências que faz a livros indistintamente, menciona vários deles pelo nome ou segundo a sua natureza — como Livro da Lei, Livro da Vida, Livro de Memórias, e outros mais. Mas esse estranho livro de Apocalipse 5, tão importante que a simples possibilidade de não poder ser aberto levou o revelador ao paroxismo das lágrimas e da angústia, é mencionado sem nenhuma indicação de sua natureza. Alguns o têm confundido com o Livro da Vida, outros simplesmente como uma revelação de sucessos históricos, mas é evidente que não se trata do Livro da Vida, dado que este não é um livro selado e o seu conteúdo — nele estão os nomes dos que estarão no reino de Deus — é bem conhecido (ver Fil. 4:3; Apoc. 13:8).
Quanto a ser um livro de revelação de eventos da História do mundo, ainda que se tratasse da história do conflito entre Cristo e Satanás, com os reflexos deste milenar conflito na própria História, com seus lances os mais dramáticos, seria simplificar demais, pois não é crível que o apóstolo da revelação entrasse em tão profunda crise de pranto simplesmente pela possibilidade de não virem a ser revelados os dramas sanguinolentos, alguns até hediondos, que se têm desenrolado no palco do mundo, como o surgimento de povos bárbaros em luta pelo poder, história de fratricídio, parricídio, matricídio, genocídio, e outros títulos horripilantes; mesmo porque, boa parte dessa tenebrosa história de conflitos e lutas, já estava revelada no tempo de João num período de mais de 4 mil anos. Portanto, deve tratar-se de um livro cujo significado em si mesmo seja mais importante do que o seu conteúdo, já que o texto nos diz que ninguém podia sequer "olhar para ele".
Na tentativa de bem entender o livro de Apocalipse 5, façamos dele uma breve análise, principalmente dos versos 1 a 13.
1. O livro na mão direita de Deus. As expressões "mão direita", "à direita", são na Bíblia uma forma enfática de salientar a importância atribuída a algum fato ou a alguma coisa, como Jesus sentado "à direita de Deus", os redimidos colocados "a Sua direita", e outros exemplos bem conhecidos. Assim o livro "na destra do que estava assentado sobre o trono'' indica tratar-se de algo extremamente grave e importante.
2. Livro escrito por dentro e por fora. E difícil entender esta expressão tal como está redigida, tendo em vista vários fatos, como:
a. Os livros antigos — pergaminho, papiro ou qualquer outro material então utilizado para escrita — não eram escritos nos dois lados. O material de escrita não comportava a escritura em ambos os lados, ou "por dentro e por fora", como se lê no texto. Quando, em virtude do elevado custo do material de escrita, este precisava ser utilizado mais de uma vez, a primeira escrita era apagada, colocando-se o pergaminho numa solução de cal. Em seguida o material era polido com pedra-pomes e com pó de marfim, estando pronto para nova escrita. Este material de escrita dupla é conhecido como palimpsesto. Modernamente muitos palimpsestos têm tido sua escrita primitiva restaurada mediante processos químicos especiais, tornando-se assim uma rica fonte de informações com relação ao passado.
b. Os livros antigos não eram como os que temos atualmente, retangulares com as folhas enfeixadas dentro de duas capas (códice), mas escritos em longas tiras coladas uma na extremidade da outra, chegando alguns desses livros (rolos) a medir mais de 10 metros de comprimento como medida comum, mas conhece-se um rolo em papiro, chamado Papiro de Harris, agora no Museu Britânico, cujo comprimento é de uns 40 metros. Estas longas tiras eram enroladas, e para serem lidas eram desenroladas de uma extremidade e enroladas na outra. Deste modo era absolutamente impossível a escrita em ambos os lados.
3. Selado com sete selos. Em vista do exposto acima, um livro enrolado e selado com sete selos, só estaria aberto quando o último selo fosse rompido, pois enquanto houvesse um selo sem abrir, selado continuaria o livro. Mas neste impressionante livro de Apocalipse 5, a abertura de cada selo punha a descoberto uma parte do conteúdo do livro, o que na realidade seria impossível. Deve haver uma explicação para este fato, e quem no-la dá é Urias Smith, em seu livro Daniel and Revelation, edição revista pela Southern Publishing Association em 1944, págs. 415e416. Aqui ele nos diz que o texto, como única explicação, levando-se em conta que não havia pontuações na época, deve ser lido assim: "Um livro escrito por dentro, e por fora selado com sete selos", isto é, um rolo inserido dentro de outro rolo, e cada um deles selado separadamente. Assim o que João viu foi um livro múltiplo, ou rolo múltiplo, cujo conteúdo era revelado na medida em que cada rolo era tirado de dentro do outro e o seu selo rompido. Deste modo vê-se que o último rolo aberto, ou seja, o sétimo selo, introduz o toque das trombetas (Apoc. 8:1 e 2) com os acontecimentos finais, e a volta de Jesus como a última e final parte do grande drama dos séculos.
4. "Eu chorava muito." A expressão no original tem o sentido de um choro convulsivo, angustioso, com soluços incontroláveis. Por que João choraria deste modo ao temer que não houvesse ninguém com dignidade para abrir o livro? O choro do apóstolo deve significar muito mais do que mera curiosidade, por mais aguda que fosse, de conhecer os sucessos que a História estaria reservando para os anos futuros. Sendo que ao apresentar-Se o Cordeiro como único digno de abrir o livro, João cessa de chorar, e há uma aclamação de júbilo por parte de todos os viventes, "cujo número era de milhões de milhões e milhares de milhares" (Apoc. 5:8,9, 11 e 13), é fácil de compreender que a salvação de todos os viventes da Terra estaria na dependência de haver alguém que tivesse dignidade para receber o livro da mão de Deus e assumir a responsabilidade de revelar o seu conteúdo. Que o ponto focal da importância do livro estava em absoluta relação com a salvação é fácil de ver pelas palavras da aclamação dos redimidos: "Com o Teu sangue [nos] compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação." Verificamos assim, sem nem de leve forçar o texto, que este não é um livro de simples encenação histórica, mas sim, livro de redenção, ou seja, o Livro do Remidor. tal como na figura do remidor em Israel, quando uma propriedade era alienada e readquirida depois pelo remidor, isto é, o parente mais próximo do aliena-dor da propriedade, como veremos a seguir.
5. "Digno . . . de abrir o livro." A dignidade de que fala o texto era de natureza legal, como se depreende do sentido original, e também do processo de remissão de heranças em Israel. Quando algum hebreu proprietário da terra era forçado, por razões financeiras, a vendê-la, esta podia ser redimida (Heb. Gaal "readquirir, resgatar, comprar de volta") em qualquer tempo, pelo próprio vendedor, se viesse a se tornar próspero, ou pelo seu parente mais próximo. (Ver SDABC, verbete Redeemer.) Assim é que não bastava a qualquer israelita ter dinheiro para resgatar uma propriedade alienada pelo dono, ainda que se tratasse de parente. Ele tinha de ter "dignidade" para fazê-lo, isto é, tinha de ter condições legais para tanto, seja como o dono original ou como remidor, isto é, o parente mais chegado. (Ver Lev. 25:25 e 26.)
Quando, de acordo com a lei levítica, uma propriedade era alienada, o ato da alienação era transcrito num livro (rolo) em duas vias, sendo uma delas oficialmente enrolada e selada, e esta só podia ser aberta pelo remidor ao readquiri-la, ou então no Ano do Jubileu, quando toda propriedade alienada retornava aos donos originais. (Ver Jer. 32:9 e 10; Rute 4: 1-4.)
Esta a dignidade que só Jesus possuía. Ele Se tornou nosso "Parente mais próximo", nosso "Irmão mais velho, para poder ter condição legal de ser o Remidor do homem e da Terra que Adão vendeu a Satanás. Assim o livro na mão direita de Deus era, figuradamente, a Escritura de Venda que Adão passou a Satanás. Se não houvesse alguém com dignidade legal para assumir o livro, para readquirir a posse da Terra vendida, toda a humanidade estaria perdida, e nem mesmo a História revelada com a abertura do livro existiria. João, pois foi conduzido àquele momento em que não se sabia que o homem tinha remidor. (Ver Jó 33:24.) Foi a angústia, portanto, o temor, de que não houvesse um remidor para o homem, que levou o apóstolo ao pranto quase desesperado. Embora seja certo que não houve jamais um momento em que o homem tivesse ficado sem Remidor. houve um tempo em que somente a Trindade tinha este conhecimento. Não admira, portanto, que todo o Céu prorrompesse numa estrondosa aclamação ao ser apresentado o Remidor do homem: o Cordeiro que havia proposto dar a Sua vida para poder adquirir a dignidade legal de nos redimir. E Jesus tinha duplamente esta qualidade: era o Dono original, e também o Parente mais próximo, por ter-Se tornado, pelo nascimento no mundo, o nosso Irmão mais velho. (Ver Efés. 1:10.)
Já não precisamos derramar lágrimas de desespero como o apóstolo João, mas sim, aclamar com alegria nosso misericordioso Remidor. Cristo Jesus. Seja Ele louvado pelos séculos dos séculos!