Que significam os símbolos proféticos de Apocalipse 17?
Este artigo analisa os símbolos proféticos de Apocalipse
17 com a proposta de diferenciar a besta escarlate da meretriz bem como da
primeira besta de Apocalipse 13:1. O estudo é feito à luz do contexto das sete
pragas e do paralelo construído entre o clímax escatológico provido pelos
capítulos 13 e 17, paralelo este usado como base para se sugerir uma relação
entre a primeira besta e a meretriz, e entre a besta de dois chifres e a besta
escarlate e seu oitavo chifre. Em seu contexto imediato, o texto de Apocalipse
17 é considerado como uma espécie de juízo de investigação seguido da execução
de sentença sobre a meretriz (Ap 18). A oitava cabeça é distinguida do poder
religioso e relacionada com os poderes político-militares.
Introdução
O capítulo 17 é uma das seções mais desafiadoras e, ao
mesmo tempo, mais fascinantes do livro do Apocalipse. Um dos anjos que têm as
sete taças da ira de Deus (Ap 16) chama o profeta para uma nova sequência de
visões, as quais se seguem à narrativa das pragas. O anjo inicia a comunicação
com o anúncio: “Mostrar-te-ei o julgamento da grande meretriz” (Ap 17:1).
A identidade da meretriz não tem sido um ponto de
discussões tanto quanto a identidade da besta e de seus chifres. Uma vez que
uma besta, também de sete cabeças e dez chifres, é descrita em Apocalipse 13:1
e se torna uma figura predominante no livro, a identificação da entidade
representada nesse símbolo de Apocalipse 17 oferece grandes dificuldades.
Uma das interpretações mais correntes tem sido que a
besta em questão aponta para a mesma entidade representada pela besta de
Apocalipse 13, e que seria o império romano, cuja capital foi considerada a
“cidade das sete colinas”, como sugere o v. 9. Essa interpretação preterista é
abraçada “pela maioria dos exegetas”[1] e resulta numa negação do dom profético
na interpretação das visões do grande conflito narradas no livro.
Outra linha de interpretação vê a besta de Apocalipse 17
como símbolo dos poderes políticos mundiais e o oitavo rei como um retorno do
sétimo poder, ou seja, de “Roma papal”.[2] Nesse caso, o “oitavo rei” indicaria
a fase final de atuação dessa entidade, após a restauração de seus poderes
perdidos na revolução francesa, em 1798.
Uma terceira interpretação considera que a besta
“escarlate” (Ap 17) se relaciona com o dragão “vermelho” (Ap 12), sendo,
portanto, uma referência ao próprio diabo em sua luta contra Deus e Seu povo,
por meio de poderes terrenos.[3] Outra visão pontua que a besta “escarlate”
deve representar uma “confederação de poderes” militares, seculares e civis em
oposição a Deus no clímax do grande conflito.[4]
Ainda uma interpretação mais popular e menos embasada
teologicamente também vê a besta como sendo Roma papal e considera que a
criação do estado do Vaticano, em 1929, pelo Tratado de Latrão, corresponderia
à cura da ferida da besta de Apocalipse 13. Os sete reis representados pelas
cabeças da besta seriam sete papas e o “oitavo”, portanto, seria um último papa
que guardaria certas relações com seu antecessor.[5]
A multiplicidade de interpretações reflete a complexidade
da visão. Um dos desafios está no fato de diversos símbolos apocalípticos serem
descritos como “besta” (ver Ap 11:7; 13:1, 11; 17:3). A palavra “besta” (gr. therion)
ocorre 38 vezes no livro de Apocalipse, sendo traduzida sempre como “besta”,
exceto em 6:8 (“feras”). Apesar de quatro bestas principais serem mostradas a
João, em geral as referências à besta são encaradas como sendo àquela de
Apocalipse 13:1, a segunda das quatro. Um dos caminhos para solucionar
problemas de Apocalipse 17 é tentar distinguir as bestas apocalípticas.
As interpretações que relacionam a besta “escarlate” com
a primeira do capítulo 13 (Roma papal) esbarram num problema claro: por fim
(17:16), a besta “escarlate” e os “reis da terra” odeiam e destroem a meretriz
(o poder religioso romano), o que requer necessariamente uma distinção entre
essas duas bestas. A “confederação de poderes seculares”[6] em vez de ser a
besta “escarlate” pode representar a própria coalizão da besta e os “reis da
terra”. Assim, é necessária uma definição mais objetiva da entidade.
Outro aspecto a ser levado em conta é o contexto das sete
pragas no qual se visualiza a meretriz e essa besta. A ideia de juízo é clara
nessa seção do livro. Além disso, é preciso relacionar essa visão (Ap 17) com
outras visões do livro na busca por elementos simbólicos paralelos.
A visão
Apocalipse 17 tem três partes principais: a fala do anjo
ao profeta (v. 1, 2); a visão dos símbolos (v.3-6); e uma nova fala do anjo (v.
7-18). Na primeira, o anjo chama o profeta para ver o julgamento da “grande
meretriz” e trata com a identidade da mulher: ela se assenta sobre muitas
águas, prostituiu os reis e embebedou os habitantes na terra. A visão descreve
os dois símbolos igualmente; e, na segunda fala, o anjo ainda trata com a
identidade da mulher, mas dá mais atenção à identidade da besta.
A visão é claramente simbólica, mas as duas falas do anjo
devem ser consideradas como explicação e, portanto, como literais e temporais,
no sentido de que elas desvendam os símbolos e ocorrem no tempo e nas
circunstâncias do profeta.[7] Os tempos verbais usados na visão devem ser
considerados. O anjo usa os verbos no passado ao tratar da identidade da
meretriz em termos de seus pecados. Com ela se “prostituíram os reis da terra”
e se “embebedaram os que habitam na terra” (v. 2). Essa prostituição indica
idolatria. Mesmo Jerusalém foi descrita como prostituta por causa de sua
idolatria (ver Ez 16, 23, Jr 51).
Na segunda fala, ao tratar com a identidade da besta, o
anjo usa verbos nos três tempos fundamentais. Ele diz que “caíram” cinco dos
“sete reis”, um “existe” e outro ainda viria (v. 10). Ele também diz que os
“dez reis”, que podem ser relacionados com as nações modernas constituídas a
partir da queda do Império Romano, ainda não tinham recebido reino, mas
receberiam (v. 12). E completa: esses dez reis e a besta “pelejarão” contra o
Cordeiro (v. 14) e também “odiarão” a meretriz (v. 16).
Juízo de investigação
Na estrutura do livro, a visão de Apocalipse 17 faz parte
do conjunto de visões relativas às sete pragas (Ap 15:5–18:24), que começa com
uma cena do santuário celestial[8] em que o término da mediação é indicado (Ap
15:5-8). Essa seção mostra o juízo de Deus sobre os “portadores da marca da
besta” (16:2; cf. 14:9, 10) e sobre a “meretriz” (Ap 17 e 18). A vingança
divina sobre a “besta”, o falso profeta e o dragão ocorre mais tarde (Ap 19:20,
21; 20:10).
Uma vez que o anjo que fala a João é um dos “que têm as
sete taças”, o “julgamento” pode ser uma explicação relativa às pragas. Todas
as pragas são narradas em linguagem literal, exceto a sexta (Ap 16:12-16), que
fala do secamento das águas do rio Eufrates, o que constitui um pano-de-fundo
tirado do Antigo Testamento. Isso sugere que essa praga pode ser o conteúdo a
ser explicado com a visão subsequente. Jon Paulien diz que Apocalipse 17 pode
ser considerado “uma exegese”[9] de Apocalipse 16:12-16, devendo ser
considerados uma unidade.
Assim, na sexta praga, a queda da Babilônia mística é
representada pela queda da Babilônia antiga, quando Ciro desviou as águas do
Eufrates e surpreendeu Belsazar em seu último banquete (Dn 6).[10]
A sexta praga sugere o desfecho do Armagedom (16:16), uma
luta de poderes políticos e religiosos unidos contra os fiéis de Deus. No auge
desse conflito, Deus interfere para livrar Seu povo, provocando a queda da
Babilônia, o que vai confundir a coalizão político-militar dos oponentes. A
queda do poder religioso dessa coalizão pode ser, portanto, o efeito da sexta
praga, a qual é explicada em detalhes literais no capítulo 18 (ver 18:2, 8, 9;
cf. 17:16).
O julgamento (gr. krima, “condenação”, “sentença”,
“punição”) em Apocalipse 17:1 pode ser relacionado ao grande conflito. Os
resultados dessa sentença repercutem além da terra, até o Céu. Por isso, após a
visão do julgamento da meretriz, o profeta ouve uma voz de “numerosa multidão”
no Céu, que diz: “Verdadeiros e justos são os Seus juízos, pois julgou a grande
meretriz” e “das mãos dela vingou o sangue dos Seus servos” (Ap 19:1, 2).[11]
Isso permite considerar a visão da queda da Babilônia
como uma sequência de juízo de investigação[12] seguido de execução da
sentença. A fim de legitimar e justificar a punição da meretriz, diante do
Universo, Deus investiga a situação com uma testemunha terrena antes de
executar a sentença. Essa atitude divina é comum. Ocorreu no caso de Adão e Eva
(Gn 3:9), Caim (4:10), os antediluvianos (6:5), os edificadores de Babel (11:5)
e Sodoma e Gomorra (19:1) entre outros.[13]
Assim, o capítulo 17 apresenta um expediente de
investigação, com a descrição das obras da meretriz: com o “vinho de sua
devassidão” (v. 2) e com as “imundícias da sua prostituição” (v. 4) se
“prostituíram” e “embebedaram” os reis e os que habitam sobre a terra. O
capítulo 18, por sua vez, descreve a punição: a meretriz se torna covil de
“demônios” e de “aves imundas” (v. 2), sofre os flagelos de “morte, pranto e
fome” e é consumida no fogo (v. 8).
Visões paralelas
A relação do juízo da meretriz com a sexta praga lança
luz adicional ao capítulo 17, no sentido de possibilitar uma mais ampla
exploração das entidades retratadas nos símbolos da meretriz e da besta
escarlate. Nessa praga, o mundo aparece completamente polarizado entre os
inimigos de Deus e o remanescente. Os inimigos integram a coalizão feita pelo
dragão, a besta e o falso profeta (16:13) que incorpora também os “reis do
mundo inteiro” (16:14). O remanescente é composto pelo grupo que “vigia e
guarda” para andar retamente diante de Deus (16:15). Ao guerrear contra o
remanescente, os inimigos desafiam o “Deus Todo-Poderoso” (16:14).
Pode ser considerado, portanto, que no Armagedom os
inimigos de Deus reúnem os poderes religiosos da terra representados pelo
dragão, a besta e o falso profeta (cristãos professos e espiritualistas) e os
poderes políticos e militares representados pelos “reis do mundo inteiro”.
Esses dois grupos são representados diversas vezes no
Apocalipse, porém mais claramente no contexto do clímax do grande conflito
descrito em Apocalipse 13 e 16–17. No capítulo 13, esse grupo opositor é
representado por dois símbolos: a primeira besta, então curada de sua ferida
mortal, e a besta de dois chifres (ver 13:11-17). No capítulo 17, esse mesmo
grupo é representado por dois outros símbolos: a meretriz e a besta escarlate.
Do capítulo 13 para os 16–17, há uma progressão em que a entidade representada
pela primeira besta torna-se um poder apenas religioso e amplia seu espectro
com a incorporação do “espiritismo” e “protestantismo”,[14] como sugerido em
16:13; por sua vez, a besta de dois chifres passa a incorporar “os reis da terra”
(16:14; 17:12, 16).
Essa ampliação na descrição das entidades justifica uma
mudança nos símbolos. De forma que, no capítulo 17, a “besta de dez chifres” é
mostrada na figura da “meretriz”, e a “besta de dois chifres” é substituída por
outro símbolo (a besta escarlate ou oitavo rei). Essa troca de símbolos é comum
na profecia apocalíptica, quando se deseja ampliar ou mudar o espectro da
revelação. Em Daniel 2, uma sequência de impérios (Babilônia, Pérsia, Grécia,
Roma e Roma papal) é representada pela estátua de ouro, prata, bronze, ferro e
barro. A mesma sequência é retratada em Daniel 7 por quatro animais: leão,
urso, leopardo e o quarto animal. Já em Daniel 8, os três últimos poderes são
representados por um carneiro, um bode e um “chifre pequeno”.
Assim, considerando o contexto comum do clímax do grande
conflito e do Armagedom, em que os inimigos de Deus assumem essa composição
político-religiosa, os capítulos 13 e 16–17 de Apocalipse podem ser postos em
paralelo, de modo que a “primeira besta” está para a “meretriz”, assim como a
“besta de dois chifres” está para a “besta escarlate”, consideradas as mudanças
na configuração das entidades em questão e as ampliações na descrição delas.
Identidade da besta
Em seus aspectos visuais, a besta de Apocalipse 17 é
diferenciada da primeira besta. Ela é “escarlate” (17:3), enquanto que a
primeira besta (13:2) tem semelhança com leopardo, urso e leão (símbolos de
Babilônia, Pérsia e Grécia, em Dn 7). Deve-se notar também que o dragão é
“vermelho” (12:3) como a besta escarlate, e, da mesma forma que ela, tem dez
chifres e sete cabeças. Assim, é sugerida uma relação entre a besta do capítulo
17 e o dragão.[15] No entanto, isso não esgota o símbolo, já que animais,
bestas e chifres representam poderes políticos seculares (ver Dn 7:17, 24,
8:20, 21).
O anjo explica ao profeta que as sete cabeças são “sete
montes” e são também “sete reis” (v. 9). A interpretação de que os “sete
montes” são as sete colinas de Roma contraria a lógica de que a besta e a
meretriz representam realidades distintas. A palavra grega orosdeve ser
traduzida por “montes” ou “montanhas”, mas a NVI a traduz por “colinas”.
Johnson afirma que, neste caso, “uma exegese prévia influenciou a
tradução”.[16] Os sete “montes” devem ser considerados como na mentalidade
hebraica, ou seja, como reinos. Por meio de um paralelismo, Isaías usa de forma
intercambiável “montes” e povo/nação: “Porque de [a] Jerusalém sairá o [b]
restante, e do [a’] monte Sião, o que [b’] escapou” (Is 37:32; ver também Sl 48:2;
Jr 51:25, Dn 2:35; 9:20, Zc 4:7). O mesmo ocorre com o termo “rei”, que os
judeus usavam como equivalente de “reino” (ver Dn 7:17; 8:21, 23).
Assim, “montes” e “reis” devem apontar para reinos ou
impérios representados nas cabeças da besta. Contrariamente à relação entre os
“montes” e a igreja romana, Johnson argumenta que esses símbolos “pertencem à
besta [poder político] e não à meretriz [poder religioso]”.[17] Como a
explicação do anjo (v. 10) é feita da perspectiva temporal do profeta, ou seja,
no primeiro século, cinco deles já tinham se passado (Egito, Assíria,
Babilônia, Pérsia, Grécia), um existia (Roma) e o sétimo ainda viria (Roma
papal).
A afirmação do anjo de que o sétimo reino (Roma papal)
teria de durar “pouco” (1.260 anos!) pode ser entendida da perspectiva da
garantia da vitória dos fiéis de Deus alcançada na cruz e não do ponto de vista
do tempo cronológico. O adjetivo “pouco” (gr. olígon, v. 10) é usado em
Apocalipse, ao se afirmar que o diabo, após a cruz, sabia que tinha “pouco tempo”
(olígon kairon, 12:12). Por outro lado, ao falar que o dragão será solto após o
milênio, mas por “pouco tempo”, João usa mikron krónon (20:3),
indicando um tempo cronometrado.[18]
Na fala ao profeta, o anjo se refere à besta como algo
que “era e não é, está para emergir” (v. 8, 11). A relação feita entre essa
besta escarlate do capítulo 17 e a besta semelhante a leopardo, urso e leão
(13:1) resulta de se interpretarem essas palavras como se proferidas pelo anjo
ao profeta no período posterior a 1798, quando Roma papal tinha perdido seus
poderes políticos com a revolução francesa, mas com a previsão de recuperá-los
no fim dos tempos. No entanto, sendo que as duas bestas devem representar
entidades diferentes, a fala do anjo pode não tratar com eventos temporais, mas
ser vista como uma paródia em relação à pretensão do dragão, com quem essa
besta se relaciona, de ser como Deus, “aquele que é, que era e que há de vir”
(Ap 1:4, 8; 4:8), o único “Eu Sou” (Êx 3:14).
O oitavo rei
Em Apocalipse 17:11, o anjo prossegue a descrição da
identidade da besta e acrescenta uma informação além da visão recebida pelo
profeta. Ele afirma a emergência de um “oitavo” elemento, de natureza
semelhante aos reis/impérios representados pelas cabeças da besta: “E a besta
[...] também é ele, o oitavo rei, e procede dos sete” (v. 11). Nesse ponto, o
texto grego diz, literalmente: “ela [a besta] mesma é o oitavo”. A palavra rei
é acrescentada em algumas versões, mas não ocorre no grego.
O fato de o anjo dizer que cinco eram passados, um
existia e o sétimo viria (v. 10) sugere uma relação consecutiva entre os “reis”
bem como em relação a esse oitavo elemento. Além disso, ele acrescenta que o
oitavo “procede” (gr. ek, denota “procedência”, “origem”) dos sete. Nesse
caso, se os “reis” são os impérios mundiais, um oitavo império, proveniente dos
sete, é previsto.
Retomando o paralelo estabelecido anteriormente, em
Apocalipse 13:11 a besta de dois chifres aponta para o império americano, cuja
origem e procedência é europeia. Nesse caso, o “oitavo rei” seria o último
império a exercer poder sobre os fiéis de Deus.[19]
A relação entre o “oitavo rei” e o império americano,
como a entidade por trás da besta de dois chifres, ainda pode ser ampliada à
luz do cenário escatológico provido por Apocalipse 13 e 16–17. A besta
escarlate “leva” (17:7; gr. bastazw, “carregar”, “conduzir”) a meretriz na
qual esta está “montada” (v. 3). Em Apocalipse 13:14, a besta de dois chifres
faz uma imagem à primeira besta e restaura sua ferida. Isto é, em Apocalipse
13, a segunda besta se coloca à disposição e a serviço da primeira.
A besta escarlate, que também é o oitavo rei (17:11),
lidera os “dez chifres” ou “dez reis” (nações modernas descendentes dos povos
bárbaros que tomaram o Império Romano) em sua investida contra o Cordeiro, no
Armagedom (17:14). Os que “habitam na terra” (13:14) e os “reis do mundo
inteiro” (16:14) são liderados pela besta de dois chifres contra Deus e Seu
povo. Nesses dois cenários, há a previsão de uma “grande coalizão” de poderes
seculares, a serem liderados pela besta de dois chifres (Ap 13) e pela besta
escarlate (Ap 17).
No entanto, no auge do conflito, o clímax da proclamação
das três mensagens angélicas (Ap 14:6-10) por parte do remanescente
escatológico, batizado na chuva serôdia, provocará o desmascaramento da
meretriz Babilônia e contribuirá para sua consequente queda. As “águas” que se
“secam” (v. 17:15), a exemplo do rio Eufrates desviado por Ciro por ocasião da
queda de Belsazar, apontam para a retirada do apoio das nações (13:14; 16:14;
17:12, 13) à causa da Babilônia mística. As nações outrora unidas em favor da
Babilônia não só deixarão de apoiá-la, mas a odiarão e destruirão (17:16).
Nesse caso, a ira de Deus sobre ela será executada por meio de seus próprios
aliados que também são inimigos de Deus. No Antigo Testamento, Deus usou a
Babilônia antiga para executar Seu juízo sobre Judá (2Rs 24:1-20; Jr 20:4), e a
Pérsia, para se vingar de Babilônia (Is 13:19; 34:14).
Diante das considerações feitas, algumas conclusões podem
ser sugeridas quanto à besta e ao oitavo rei de Apocalipse 17. Uma vez que se diz
que a besta é “também” o oitavo, conclui-se que ela é também cada um dos
impérios representados por suas sete cabeças. A besta escarlate, nesse caso,
pode representar o poder imperial que, ao longo da história, se opõe a
Deus.[20] Sendo que ela está relacionada ao dragão vermelho (12:3), os impérios
mundiais podem ser vistos como a materialização do governo de Satanás no mundo.
“Cada cabeça da besta é uma encarnação parcial do poder satânico que governa o
mundo por um período.”[21] Mesmo assim, eles pretendem ser permanentes e
invariavelmente se opõem ao povo que segue a vontade de Deus.
Todos os impérios afrontam a Deus, de alguma forma. O
faraó do Egito questionou Moisés: “Quem é o Senhor para que Lhe ouça a voz e
deixe Israel ir?” (Êx 5:2). O rei assírio Senaqueribe cercou Jerusalém e
desafiou o “Senhor”, afirmando que, assim como os deuses das nações que tinha
conquistado, o Senhor não poderia livrar Judá de suas mãos (2Rs 18:13, 30-35).
Nabucodonozor ameaçou os judeus, dizendo: “Quem é o deus que poderá livrar-vos
das minhas mãos” (Dn 3:15). Na Pérsia, Hamã quis exterminar os judeus porque
eles seguiam as leis do Senhor (Et 3:8). O selêucida Antíoco matou judeus e
profanou o templo. Roma crucificou Cristo e destruiu Jerusalém. Acerca de Roma
papal, se indagaria: “Quem é semelhante à besta?” (Ap 13:4). Por sua vez, o
poder americano previsto em Apocalipse 13:11 fará com que a Terra e seus
habitantes “adorem” a primeira besta (13:12) e condenará à morte todos os que
não fizerem isso (13:15).
No panorama escatológico do Apocalipse, o último poder
político-militar de alcance global (13:12) a assumir atitudes imperiais como os
sete anteriores é o império americano, que é “procedente” da Europa e,
portanto, tem uma relação com os anteriores em termos de origem. Sendo que as
cabeças da besta escarlate representam sete impérios mundiais (Egito, Assíria,
Babilônia, Pérsia, Grécia, Roma e Roma papal), a oitava cabeça pode ser,
portanto, o poder americano, conforme representado pela besta de dois chifres
em Apocalipse 13:11.
Acerca dos impérios, não só o oitavo “procede” dos sete,
mas todos eles guardam certas relações, sugerindo que são, ao longo da
história, um poder comum em oposição a Deus. É um poder comum no sentido de que
Satanás exerce o poder por trás de cada cabeça da besta. Por isso, justificaria
serem representados por uma mesma besta de sete cabeças. “A imagem de uma besta
de sete cabeças representa uma besta que vive, morre e torna a viver sete ou
oito vezes”.[22] A expressão “era e não é, está para emergir” (17:8) pode ser
vista também nessa perspectiva.
O chamado “Grande Selo dos Estados Unidos”, estampado na
cédula de um dólar é uma evidência dessa relação entre os impérios. O selo
representa a integração de valores culturais dos impérios egípcio, grego,
persa, babilônico e romano no império americano. Seus principais elementos são:
(1) a pirâmide truncada egípcia muito usada pela maçonaria; (2) o olho da
Providência, ou o olho de Hórus, deus solar filho de Osíris e Ísis, na
mitologia egípcia; (3) a águia de cabeça branca, que era o pássaro de Zeus na
mitologia grega e representava a descida do deus à Terra na crença egípcia; (4)
as frases “annuit coeptis”, “novus ordo seclorum” e “e pluribus unum”, tiradas
de Virgílio, poeta romano.[23] O desenho da águia, no selo, faz referência ao
chamado “Faravahar”, uma efígie persa que simbolizava a luz celestial em torno
dos reis, heróis e santos da Pérsia.
As culturas imperiais, portanto, compartilham valores,
símbolos, ideais, mitos, crenças e, sobretudo, uma visão comum de seu pretenso
papel na manutenção da ordem do mundo.[24]
A meretriz
A meretriz não é objeto de grandes disputas por parte dos
intérpretes, pois a mulher pura aponta para a igreja verdadeira tão claramente
quanto a vulgar revela a religião corrompida. No entanto, se Apocalipse 17 e 18
apresenta um juízo de investigação seguido da execução de sentença, e sendo que
em 18:24 se diz que a meretriz é culpada pelo sangue “de profetas, de santos e
de todos os que foram mortos sobre a terra”, ela já devia existir antes da era
cristã.
Além disso, observando os tempos verbais na visão, o anjo
diz a João que com ela se “prostituíram” os “reis da terra” (v. 2) e com seu
vinho se “embebedaram” os que “habitam na terra” (v. 2). Os verbos conjugados
no passado, no tempo de João, apontam para a relação da meretriz com os
impérios que tinham existido até então (do Egito a Roma).
João viu que a meretriz estava “montada” na besta
escarlate (17:3), e o anjo disse que ela está “sentada” sobre muitas águas
(17:1, 15) as quais representam povos e nações (17:15). Ela também está
“sentada” nos sete montes, que são os impérios. O verbo grego usado nesses
versos é o mesmo: kathemai. Para Johnson, “Babilônia é encontrada onde
quer que haja engano satânico” e representa “a cultura do mundo separado de
Deus”.[25] A meretriz, nesse caso, revela uma religião perversa que esteve
difundida em todos os impérios, embora tenha sua manifestação mais plena e
final na Babilônia mística dos últimos dias.
O juízo divino traz à memória todos os profetas e santos
mortos ao longo da história e os vinga sobre a meretriz, cujo incêndio faz
prantear os próprios “reis da terra” (18:9, 10, 18).
O anjo diz que a meretriz embebedou os que “habitam na
terra” com seu vinho. Ora, o vinho de Babilônia, entre outras coisas, aponta
para a santidade do dia do Sol e a “imortalidade da alma”, a mentira
primordial.[26]
O culto ao Sol e a crença na imortalidade da alma são
encontrados em todos os impérios, desde o Egito. “O culto do Sol era difundido
e sua deificação foi uma fonte de idolatria em cada parte do mundo antigo”.[27]
Richard Rives afirma que egípcios, assírios, babilônios, medos e persas, gregos
e romanos foram todos adoradores do Sol.[28] A proibição feita por Moisés
atesta da atração desse culto naquele no tempo (Dt 4:19). No Egito, o extenso e
dispendioso ritual de embalsamamento mostra a vitalidade da crença na
imortalidade nesse primeiro império, a qual reporta ao Éden.[29] Essas duas
heresias funcionaram ao longo da história como uma arma eficaz da meretriz para
seduzir reis e povos e para perseguir os fiéis de Deus.
Conclusões
Assim, as visões narradas em Apocalipse 17 e 18 podem ser
vistas como revelações adicionais e explicativas sobre a sexta praga e tratam
com a queda da Babilônia. Há uma sequência de juízo de investigação (17)
seguido de execução da sentença (18). A meretriz e a besta escarlate parecem
revelar entidades diferentes constituintes do grupo dos inimigos de Deus no
clímax do grande conflito, contra os quais Deus executa juízos. Após a
investigação retratada no capítulo 17, o Apocalipse mostra a execução da
sentença divina primeiramente sobre a meretriz (18:20), depois sobre a besta
(escarlate) e o falso profeta (19:20) e, por fim, sobre o dragão (20:10).
A relação da besta escarlate com o dragão vermelho (12:3)
sugere que o diabo é o poder por trás de todos os impérios que, ao longo da
história, se opuseram a Deus e a Seu povo. O paralelo entre o clímax
escatológico descrito nos capítulos 13 e 16–17 favorece a comparação entre a
primeira besta e a meretriz, bem como entre a besta de dois chifres e a besta
escarlate ou oitavo rei. A oitava cabeça pode ser vista como um poder político-militar
escatológico que, sucedendo as sete primeiras, seria o poder americano.
A meretriz é culpada do sangue de santos e profetas
(18:24) de toda a história, e o juízo de investigação retoma seus pecados desde
o primeiro império, o Egito. O vinho com que ela embriagou os povos da Terra
revela as duas heresias (imortalidade incondicional e culto do Sol/domingo) as
quais atravessam todos os impérios.
Essa visão do poder imperial e religioso que, ao longo da
história, se opôs a Deus, sendo que um império herda e mantém valores e
conceitos dos anteriores, mostrando-os conectados um ao outro, torna bastante
apropriadas as palavras de Daniel a Nabucodonosor, acerca da pedra que caiu nos
pés da estátua, sendo então “esmiuçado o ferro, o barro, o bronze, a prata e o
ouro, os quais se fizeram como a palha”, e “o vento os levou, e deles não se
viram mais vestígios”. Mas “a pedra que feriu a estátua se tornou em grande
montanha [reino], que encheu toda a terra” (Dn 2:35, 45).
O reino de Cristo, ao ser estabelecido, não herdará nada
dos anteriores, mas destruirá para sempre todas as obras humanas que os
diferentes impérios compartilharam ao longo da história.
(Vanderlei Dorneles, doutor em Ciências, é editor na Casa
Publicadora Brasileira e professor no Salt-Iaene, na Bahia)
Referências:
1. Alan F. Johnson, in ed. Frank E. Gaebelein, The
Expositor’s Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1981), p. 554.
2. Ver Ranko Stefanovic, Revelation of Jesus Christ (Berrien
Springs, MI: Andrews University Press, 2002), p. 515, 516; Francis D. Nichol,
ed. Seventh-day Adventist Bible Commentary (Washington, DC: Review
and Herald, ed. rev. 1980), p. 854-856.
3. Ekkehardt Mueller, “A Besta de Apocalipse 17: Uma
Sugestão”, in Parousia: Revista do Seminário Latino-Americano de Teologia,
Unasp, Engenheiro Coelho, SP, 1º semestre de 2005, p. 39.
4. Jon Paulien, Armageddon at the Door (Hagerstown:
Review and Herald, 2008), p 136, 212; e Nichol, p. 851.
5. Ver Paulien, 215, 216.
6. Paulien, p. 212.
7. Paulien, p. 214, 215.
8. Richard Davidson diz que “todo o livro [do Apocalipse]
é estruturado pela tipologia do santuário” (Richard M. Davidson, “Sanctuary
Tipology”, in ed. Frank B. Holbrook, Symposium on Revelation:
Introductory and Exegetical Studies, Book 1 (Silver Spring, MD: Biblical
Research Institute, 1992), p. 112). Ver também Kenneth Strand, “The Eight Basic
Visions”, in ed. Frank B. Holbrook, Symposium on Revelation: Introductory
and Exegetical Studies, Book 1 (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute,
1992), p. 35-49.
9. Paulien, p. 208.
10. Jon Paulien argumenta que “o Apocalipse não pode ser
entendido sem contínua referência ao AT”, pois ele é um “perfeito mosaico das
passagens do AT”. As recorrentes referências ao AT no Apocalipse indicam que
ele é a principal chave para abrir o significado dos símbolos do livro. “O AT
provê os meios para “decodificar a mensagem do Apocalipse” (Jon Paulien,
“Interpreting Revelation’s Symbolism”, in ed. Frank B. Holbrook, Symposium
on Revelation: Introductory and Exegetical Studies, Book 1 [Silver Spring,
MD: Biblical Research Institute, 1992], p. 80).
11. A meretriz de Apocalipse 17 reproduz a figura de
Jezabel: ambas praticam prostituição (2Rs 9:22; Ap 17:2, 4, 5); derramam sangue
de santos e profetas (2Rs 9:7; Ap 17:6; 18:20, 24); e têm a carne comida (1Rs
21:23; 2Rs 9:36; Ap 17:16).
12. Paulien entende que “o santuário do AT e seus rituais
exercem uma função estrutural na organização do livro do Apocalipse” (Jon
Paulien, The Deep Things of God [Hagerstown, MD: Review and Herald,
2004], p. 124).
13. Ver Gerhard F. Hasel, “Juízo Divino”, in Raoul
Dederen, Tratado de Teologia Adventista do Sétimo Dia (Tatuí, SP:
Casa Publicadora Brasileira, 2011), p. 908-911, 935.
14. Ellen G. White, O Grande Conflito (Tatuí,
SP: Casa Publicadora Brasileira, 1988), p. 588-589; ver Paulien, 2008, p.
160-165, 173.
15. A figura do “dragão”, como representação das forças
opositoras a Deus, é bem conhecida na Bíblia. Curiosamente, ele é relacionado
ao faraó do Egito e a Nabucodonosor da Babilônia, dois impérios representados
nas cabeças da besta escarlate (Ap 17). No êxodo, Deus esmagou a cabeça de tannyin (Sl
74:13; 91:13), que é traduzido por “monstro marinho” (ARA), “dragão” e
“serpente”. Segundo os profetas, Deus esmagou tannyin no êxodo (Is
51:9) e no retorno do cativeiro de Babilônia (Jr 51:34; Is 52:11) e, no dia do
Senhor, Ele esmagará tannyin (Is 27:1) definitivamente. No
proto-evangelho, o Filho da mulher esmagaria a cabeça da “serpente” (Gn 3:15).
No Apocalipse: a salvação é consumada quando o “dragão” (gr. drákon) que
foi expulso do Céu (12:7-9) e perseguiu a mulher (12:17) for derrotado por
Cristo no “lago de fogo” (20:10). A LXX usa o substantivo grego drákon para
traduzir o hebraico tannyin.
16. Johnson, p. 559
17. Johnson, p. 560.
18. Ver 1 Pedro 1:6, que também usa olígon no
sentido de tempo não cronometrado.
19. Sobre o desenvolvimento da interpretação adventista
acerca da besta de dois chifres de Apocalipse 13:11, ver Vanderlei Dorneles, O
Último Império (Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 33-52.
20. Stefanovic, p. 515.
21. Robert L. Thomas, Revelation 8–22: An
Exegetical Commentary (Chicago, IL: Moody Press, 1995), p. 292.
22. Paulien, p. 211.
23. Ver David Ovason, The Secret Symbols of Dollar
Bill (New York, NY: Harper Collins, 2004).
24. Ver Dorneles, O Último Império, p. 89-115; ver
também Manly P. Hall, The Secret Destiny of America (New York:
Penguin, 2008).
25. Johnson, p. 554.
26. Ellen G. White, Mensagens Escolhidas (Tatuí,
SP: Casa Publicadora Brasileira, 1988), vol. 2, p. 68, 118.
27. William T. Olcott, Sun Lore of All Ages (New
York: Putnam’s Sons, 1914), p. 142.
28. Richard Rives, Too Long in the Sun (Charlotte,
NC: Partakers, 1999).
29. Ver Samuele Bacchiocchi, Crenças Populares (Tatuí,
SP: Casa Publicadora Brasileira, 2012), p. 50-60.